Por Karla Pontes
Acabei de fazer uma faxina na minha casa. Daquelas que a gente adia, adia até não poder mais.Limpei cada cantinho. Lavei as telas das janelas, os vidros, tudo com muito cuidado. Fui e voltei várias vezes, atenta se havia algum vestígio de sujeira insistente.
Joguei cloro e desinfetante nos banheiros, esfregando bem o chão. Depois de enxaguado, inspirei devagarinho o aroma de lavanda… Que delícia!
Na cozinha os azulejos mereceram atenção especial: detergente, esponja e muita esfregação (que mais parecia um carinho).
Nos quartos e na sala cuidei dos ventiladores de teto. Nada de poeira! Um pouco de trabalho e o ventinho começou a sair melhor. Óleo de peroba em tudo o que havia de madeira, e pronto! Serviço terminado.
Faxina feita, banho – delicioso! – tomado, deitei-me no sofá da sala para descansar. As pernas estão doendo ainda, e uma dorzinha de cabeça anuncia a hora do Torsilax. Espero um pouco. Ajeito-me. Fecho os olhos.
É impressionante como olhar a casa agora me dá mais alegria e orgulho. Está tudo no lugar. O piso do quintal reflete a luz do sol, o vidro da janela me revela a vizinhança, o fogão quase me convida a preparar um jantar. Tudo fica mais bonito. O perfume de lavanda não quer ir embora, e eterniza um pouquinho a lembrança de tudo o que fiz.
Estou pronta para uma faxina dessas em mim mesma, por que não a faço?
Por que será que a limpeza da casa sempre acontece, por mais que eu adie e, no entanto, a minha alma fica sempre esperando pelo dia da faxina? Há tanto o que jogar fora, tanto o que polir, tanto o que limpar…
Minhas vidraças tão sujas impedem-me de ver tanta coisa! Tudo o que há de humano em mim impede-me de ver que há vida lá fora: O orgulho me afasta das pessoas que julgo precocemente, fazendo com que eu perca oportunidades de conhecê-las verdadeiramente… A vaidade me afasta das pessoas toda vez que penso ser melhor do que elas…
Estou pronta para a faxina. Quero ter vidraças limpas. Quero ter o direito de melhorar. De me cansar, passar um ou vários dias esgotada, mas sentir o aroma da lavanda testemunhando que valeu a pena o esforço.
Eu quero acordar numa manhã de sábado e mudar. Começar limpando cada cantinho do meu coração, principalmente aquele destinado às mágoas, as feridas causadas pelas palavras ásperas que ouvi de quem amei tanto! O cantinho da memória visual que guarda as idas físicas de quem tanto desejei que ficasse… Que guarda as letras naquela carta de adeus que nunca desejei ter recebido… Que guarda as fotos do que sempre pensei que fosse, mas que nunca foi.
Preciso limpar os vidros, ainda que isso me custe várias idas e vindas pra saber se ficaram sem vestígios. Aquelas lembranças de abandono, de solidão, de palavras ouvidas que jamais esqueci.
Algumas coisas só sairão com cloro, mesmo. Será preciso cloro e desinfetante para limpar meu coração das angústias vividas, das dores sentidas, das saudades… Mas, depois, inspirar a lavanda será bom. Me deixará feliz.
Estou pronta. Essa faxina já foi adiada demais, e a ninguém faz bem conviver com sentimentos que perturbam magoando por tanto tempo! Eu mereço livrar-me das poeiras que poluem meu coração e deixá-lo novo e vivo novamente.
Daí poderei sentar-me e olhar em volta de mim mesma, avaliando o resultado: uma Karla nova, modificada, restaurada. Olhar a nova Karla preencher-me-á de igual alegria e orgulho. Estará tudo no lugar. E, limpa e refeita, poderei ter a chance de ser diferente. Nunca mais as mágoas, nunca mais os adeuses, nunca mais a solidão. E refletirei o brilho do Sol, como o piso lavado, desprovida que estarei de ressentimentos.
E minha limpeza estará concluída, revelando a Karla que verdadeiramente existe dentro de mim e que ninguém conhece, tantos foram os anos em que adiei essa faxina.
Karla Pontes.